E esse rei tinha três helicópteros, quer dizer, o Estado que ele
governava os tinha, porque foi comprado com dinheiro público. Mas
esse rei tinha uma rainha, como toda história de rei que se preze. E
essa rainha era tratada como uma princesa, como toda rainha que se
preze. Ela tinha vestidos caros, de trinta mil reais, ganhados de
amigos desinteressados, ou comprados com o salário de trinta mil reais que seu marido
ganhava enquanto oitenta porcento da população ganhava setecentos
reais.
Contudo, não vou ficar falando de salários porque não sou
invejoso. Vou contar que essa bela família vivia num palácio e,
para todo lugar que o rei fosse, ia de helicóptero. E o rei já
ocupava o trono há mais de vinte anos. E do alto a cidade ficava
cada vez mais bonita, com cada vez mais carros, que ele admirava,
contava, brincava de identificar as marcas lá do alto. E ele já
estava ficando craque nisso, principalmente em carros importados e de
luxo. Ele sempre acertava na mosca e vencia a disputa, ou talvez seus
acompanhantes erravam propositalmente para agradá-lo. E isso não
o incomodava pois, cada vez mais, estava convencido de sua
infalibilidade: mais cedo ou mais tarde ele ganharia a disputa,
pensava.
E, enquanto a cidade crescia, ele percebia que seu povo já não
andava mais pelas ruas. Cada vez menos pessoas andando a pé, às
vezes apenas umas poucas, com andar apressado. E um dia ele leu que
em seu pequeno país, havia o maior tráfego de helicópteros do
mundo. E julgava que seu governo era tão bom que as pessoas já não
precisava mais andar a pé, todos estavam muito bem financeiramente e
andavam de carro ou helicóptero.
Lá do alto não se via assaltos e sequestros, nem buracos no
asfalto, nem meninos cheirando cola nas praças, nem pedintes no
semáforo, nem flanelinhas, nem carroceiros, nem o malcheiro do
esgoto a céu aberto, poluindo o rio que cortava a cidade. Então seu reinado estava bom.
E assim eles viviam felizes para sempre.
Até o dia em que sua amada rainha resolveu que, além de vestidos
caros e eventos sociais suntuosos, ela queria também amor, carinho.
Mas o rei, onipotente, infalível e autocentrado comportava-se de
forma estranha. Passava horas frente ao espelho, beirava o mito de
Narciso. Acreditava quando vencia seus súditos em importantes
desafios de soletrar, adivinhar marcas de carros e leitura de
pensamentos durante suas viagens de helicóptero. Ele até se achava o mais veloz da cidade quando,
imaginariamente, disputava com os carros congestionados quem chegava
primeiro na próxima esquina.
Mas acontece que o rei estava fugidiço, quanto mais a rainha
investia, mais ele se esquivava. Ela tentava seduzi-lo, ele bradava um
discurso anticorrupção. Ela cobrava carinho, ele abafava a CPI. Ela
implorava por um banho juntos, românticos, ele recorria à frieza da lei.
Fugia tão fugido do tal banho que desistiu de investimentos em
captação e abastecimento de água. O assunto lhe dava ojeriza.
Declarou estado de emergência com a estiagem. Procurou no Clima Tempo a previsão de chuvas e comemorou. Ameaçou multar quem
gastasse água e isso lhe deu ar de político sério e austero. “Nada
de banho juntos, temos que dar o exemplo economizando água”, era a
desculpa ideal.
A rainha estava desconsolada, sentia um fogo subindo pelos joelhos.
Não aguentava aquela seca - e aqui a palavra tem duplo sentido.
Encomendou até uma sessão de descarrego no novo Templo de Salomão. Pensou no seu direito de esposa, na necessidade de sentir-se mulher,
resolveu que na hora do jantar protestaria contra aquela situação,
mas logo desistiu: seu marido cuidava disso com bombas e balas de
borracha.