Google+ O Riso e o Siso: novembro 2012

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sobre Lobos e Camparis - Continuação

Acima da moto, o sol forte ardia, o vento acertava o rosto com violência. Os dois aceleravam suas motos ao máximo. Esticavam o cabo do acelerador exigindo toda a potência... enquanto uma fila de veículos surgia, lentamente, por entre a fumaça dos motores dois tempos, e os empurrava a buzinadas.
A estrada de mão dupla era traiçoeira -e a imagem ao lado é meramente ilustrativa. Os dois foras-da-lei sabiam disso.
Cada carro que se aproximava sinalizava e eles retribuíam. Agora eram bandidos com fã-clube? Até perceberem que, na verdade, mostravam o dedo do meio e mandavam sair da frente.
-Que merda, aquele bebê me mandou tomar no cú!!
"Gente invejosa", pensava o líder. Se estava de moto era pela liberdade, e liberdade ele tinha de permanecer no meio da pista também!
Contudo, uma coisa estranha fisgou sua concetração. O sol refletia em cada detalhe cromado dos carros, fazia subir um calor insuportável do asfalto, mas nessa hora seu corpo gelou. Pelo retrovisor direito percebeu um fusca vermelho se aproximando rapidamente e, ao volante, a balconista enganada.
-A maldita não sabe ler, mas sabe dirigir?
"Desgraçada! Ela está vindo atrás do restante do dinheiro. É claro que uma dose de Campari não podia custar igual a uma cachaça!", ele pensou.
O coração disparado fazia a cabeça girar... Ou seria o Campari sem gelo?
O carro passou buzinando pedindo passagem; o coração quase pulou da moto e caiu no acostamento. Na passagem ele percebeu o engano: era um homem ao volante. Tudo bem, talvez ninguém tenha percebido nada.
Pouco tempo depois, para sua agonia, um caminhão se aproximava. E, dessa vez, o espelhinho retrovisor direito deu a certeza de que era a analfabeta ao volante. "Diabos! Essa mulher não desiste? Me perseguindo de caminhão? Dar golpe em pobre é perigosíssimo. Essa maluca vai me matar por uns trocados?".
O pavor tomou conta, cogitou parar, pedir desculpas, ajoelhar, dizer que nunca mais faria aquilo. De quebra, pagaria uma garrafa inteira de Campari. As mãos suadas deixavam a aceleração diminuir, os braços tremiam a roda da frente, tanto que quase ziguezageava na pista. O vento do caminhão o jogou no gramado do acostamento. Seu parceiro só percebeu o sumiço uns dois quilometros à frente. Rapidamente, retornou para socorrê-lo.
O susto foi gigantesco, mas nada grave. Ele estava sentado no gramado com as mãos apoiando a cabeça. Apenas ganhou um colorido verde na jaqueta de couro e na lateral da mini yamaha. Ele mal conseguia parar em pé de tanto que tremia.
-Maneiro, agora você tem uma jaqueta camuflada! - tentou aliviar o parceiro.
Mas o outro dizia coisas sem sentido. Tentou levantar e andar. As pernas bambas derrubaram-no de lado. Percebeu, na passagem do caminhão, que não era mulher quem dirigia, e mesmo assim estava resoluto em voltar e pagar a diferença, pedir desculpas e tudo que fosse necessário para livrar-se dessa maldição.
O fiel companheiro compreendeu a gravidade da situação e tentou acalma-lo:
-Está tudo bem! Não saímos devendo nada. Eu vi que ela não tinha cobrado direito. Paguei a diferença da dose e ainda deixei uma boa gorjeta pra ela - falou sorridente, esperando eliminar a culpa do colega.
-Você o que? Maldito infeliz!
E ele todo cheio de orgulho:
-Isso mesmo. Eu acertei a conta! Fica tranquilo! Não vamos precisar voltar...
-Mas que merda! É só eu me virar e você já faz uma besteira dessas? Você não entendeu nada mesmo. Vai ficar atrás de mim dando uma de coroinha? Você tem que ser mau, ou nunca será um fora-da-lei como eu.

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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Sobre lobos e Camparis

yamaha cinquentinha
Foi assim, quase como uma cena de faroeste. Só que sem cavalos. E no lugar de cavalos, motos. Só que também sem armas. E no lugar de armas, a língua afiada. E também sem aquele capinzinho voando atravessando a rua. Se bem que era um lugar tão estranho que era capaz de ter, sim, esse capinzinho!
Bom, o caso é que o cenário era meio em sépia, e tinha um ar de velho-oeste, no interior de São Paulo.
Os dois chegaram em suas motos. Que na época eram mini-yamahas, de cinquenta cilindradas. Tudo bem, eu sei que cinquenta cilindradas é algo broxante... Praticamente uma enceradeira com rodas. Mas era "A Enceradeira"! E, para a época, local e personagens, era o melhor que se podia arrumar.
Eles chegaram de longe, quer dizer, não tão longe, mas a velocidade era baixa, então a viagem demorou uma vida. Traziam no corpo o pó da viagem, porque na época era o único pó que se carregava. O de café ficava em casa. Estavam sedentos por novas aventuras, por novas paisagens, e por uma dose de Campari. Porque naquele tempo não havia bafômetro.
Estacionaram suas motos na porta do bar, não colocaram cadeado, porque naquele tempo e naquele tipo de cidade não era necessário, o barulho e a fumaça dos motores dois tempos calaram a clientela e eles entraram arrastando consigo os olhares.
O clima estava hostil. "Finalmente, um lugar onde me sinto em casa", murmurou um deles. Sabiam, pela experiência, que não poderiam fraquejar. Estavam ali, naquela vizinhança pacífica, mas a qualquer hora uma briga violenta e generalizada poderia se desenrolar. As mesas repletas de casais e crianças eram apenas disfarce. "Encenaçãozinha barata", pensou o outro. Fizeram cara de mau, andando com pernas e braços arqueados para dar impressão de mais músculos. Aquela cara de mau faria qualquer um tremer. Cara de bandido mesmo, daqueles que bebe leite no bico e bate na mulher por esporte. A Suzana Vieira teria se apaixonado.
Para eles, no fundo, essa cidadezinha pacata e sem crimes era um poço de maldades e violência, pronta para explodir. "E explodiria na cara de quem menos esperasse", alguém pensou em voz alta.
-Oi, desculpe, como é? O que você disse?, perguntou a balconista.
-Hã? Eu? Eu não disse nada. Não disse nada. Você falou alguma coisa?, virando-se ao parceiro.
-Não, nop, eu não, nadica de nada.
-Posso lhe servir em algo?, retrucou a balconista.
Aquela dissimulada! Quem era ela para se portar daquela forma inquisidora? A odiosa mania de te cercar com perguntas e induzi-lo ao erro. Não se deixariam vencer pelo tom amigável da sua voz.
-Me vê duas doses separadas de Campari.
-Não tem.
-Você sabe o que é Campari?
Ela balançou a cabeça. Ele apontou para uma garrafa empoeirada no alto da prateleira.
-Quanto é?
-Ah, não sei. Deve ser o preço da cachaça, né?
Como assim? Um Campari com preço de cachaça? Essa mulher é insana? Aí tem...
-E quanto é a cachaça?
Ela apontou, acintosamente, para a placa de preços.
-Mas ali tá em Cruzeiro! Essa placa é do tempo do Getúlio Vargas!
-Ah, desculpe, é que eu não sei ler direito. Só estou tomando conta um minutinho para o seu Felizbino que foi alí buscar mais gelo.
Ótimo, ia ser Campari sem gelo, pra sangrar a garganta seca, e o preço errado. Mas aquela matreira não os enganaria... aquela desculpinha de que não sabia ler e aquele sorrisinho no rosto não seriam emboscadas. Os dois descofiavam de rabo de olho. Ela foi chamada para cobrar as doses. Eles desconfiavam dos cálculos, antes mesmo de serem feitos. Cobrou mesmo como duas doses de cachaça, talvez mais barato, até.
Os dois "foras-da-lei" saíram do bar montaram em suas motos e retomaram a estrada para mais aventuras. A consciência pesada por terem enganados uma analfabeta... Esse mundo era mesmo o mundo-cão...

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terça-feira, 13 de novembro de 2012

Escalada da Violência: Nova modalidade Olímpica

We want you!
Mais uma madrugada sangrenta no estado! As empresas de caixão não estão dando a mínima... são todos corpos não identificados, de fugitivos ou viciados. Não tem gasto com enterro... Aliás, a população também não está muito ligada... Só tá contente que o colete à prova de balas está em promoção. E ouvi dizer que vão lançar uns modelos com logo da Coca e da Nike pra Copa! Inclusive vasaram na net, algumas fotos dos modelitos:
modelo para a classe C
modelo para a classe C



Esses são os modelos para a classe C! Os ricos estão esperando modelo, Calvin Klein, Hugo Boss e Louis Vuitton.
O Neymar já encomendou o dele!
O Ronaldo também já encomendou o colete dele. Tamanho Plus Size, sob medida.
Colete sob medida para Ronaldo
Mas ele encomendou só pra se exibir mesmo. Ele é corinthiano, não tá preocupado com a violência. Ele não é assaltado! Nem sofre com flanelinhas porque eles não alcançam helicóptero! Só se comprarem um Jet Pack. Nada disso é prioridade pra ele. Só os Estádios!
Só não dá pra dizer que é sempre a mesma coisa, que toda noite é igual, porque não é. Para não ficar repetitivo, os assassinos estão variando o número de mortos. Numa noite é 12, na outra 14, depois volta pra 12, fica nessa faixa. Engraçado é que nunca o número é 13! Acho que é pra não fazer campanha pro PT.
-Chefe, a notícia que vai sair na mídia hoje é de 13 mortos.
-13? 13, não, bota 12 e diz que um tá em coma... a gente conta esse amanhã...
Não! Não dá pra aceitar ajuda, nem divulgar o número da sigla dos caras!
Deu a notícia em vários jornais, até no Fantástico, do vídeo dos policiais prendendo um caboclinho que apareceu morto logo depois. No B.O. dizia que o corpo tinha sido encontrado numa viela, mas a mídia não entendeu. É que o B.O. é padrão. Não tinha como mudar a história: Pra facilitar a vida na hora de fazer o boletim de ocorrência, o governo preparou um modelo que é só preencher as lacunas. É muito mais agilidade. Acho que dá até pra fazer no Poupa Tempo!

E, para as Olimpíadas do Rio, em 2016, já estão estudando inserir novas modalidades como "Escalada da Violência", "Nado Costas em mar de sangue" e "Arremesso de Bala Perdida".

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Adoniran me perdoe...


Acabou o dinheiro e foi enxotado do bar. Passou só para tomar uma dose, pois estava liso. Caminhava lá pelos lados do mercado, carregando uma sacola, quando percebeu uma movimentação no entorno de uma casa. Aproximou-se. O que havia? Inteirou-se do assunto: era um velório. "A Iracema! Lembra dela?". Não conhecia a Iracema. "Foi atropelada". Que estúpida a Iracema. "Ela trabalhava ali na rua das fábricas". Nããã, nada, nenhum resquício de memória. Iracema era uma desconhecida. Tentou fazer cara de pêsames, não conseguiu, cansou do teatro e já estava retomando o rumo quando uma ideia o iluminou. Parou, olhou para trás, buscou a janela. Isso! Velório em casa tinha sempre algo de comer e de beber. Salgadinhos para enfrentar a noite que se adensava, quem sabe um licorzinho para amenizar a tristeza...
Respirou fundo, preparou a cara de desolação e penetrou na sala. Andando cabisbaixo talvez ninguém o perceberia. Foi interpelado umas duas vezes. Tentou parecer íntimo da defunta. Errou o nome! Meu Deus, Irene? De onde saiu esse nome? Qual era mesmo o nome da infeliz? Já ensaiava uma rota de fuga quando um comentário ao lado o trouxe de volta: "Como a Iracema tá elegante no caixão!". Pronto! Iracema, Iracema, Iracema, não posso mais esquecer - ele repetia. Enquanto cruzava com bandejas de paezinhos com carne moída, e garrafas de licor e conhaque, enfiava na boca o que conseguia. Seguia em direção ao caixão. Já se sentia à vontade para arrastar uma cadeira e se instalar na cabeceira. Àquela altura a morta lhe pareceu bonita. Pensou em ampliar suas emoções.
-Talvez se eu parecer realmente íntimo, até melhore o tratamento. Vão querer me consolar, me servirão sentado. Quem sabe as melhores bebidas da despensa para aplacar minha dor... - pensou.
Passou a conversar com a falecida:
-Iracema, já há alguns dias eu vinha te procurando, Iracema! O que aconteceu, Iracema?
Repetia o nome dela no final de cada frase para dar ênfase ao desespero...
-O que eu vou fazer da minha vida sem você, Iracema?
A fala chorosa; as pessoas iam parando suas conversas para atentar ao sofrimento do homem.
-Como você foi me fazer uma coisa dessas, Iracema? Sempre te pedia para ter cuidado pela rua, Iracema! E agora? O que eu faço, Iracema? - ergueu a sacola como se mostrasse para ela - Só me restou isso de você, Iracema! Isso e a conta do sapateiro, Iracema, a conta do sapateiro...
A platéia aumentava, ele já se candidatava ao Oscar. A língua, meio pesada de bebida, criava vida...
-Iracema, faltavam vinte dias para o nosso casamento, você atravessou a São João, veio um carro, te pega e te pincha no chão. Você foi para Assistência, Iracema. O chofer não teve culpa, Iracema - e completou no auge, aclamando piedade dos demais - Paciência, Iracema, paciência.
-Meu senhor, deve haver algum engano. Acho que está lamentando pela pessoa errada. A Iracema se matou, não foi acidente. Ela se jogou na frente de um caminhão. Morreu mortinha, na hora, não teve nem chance de resgate.
-Sim, claro, eu sei, mas é que, como noivo, fica difícil aceitar que ela estava passando por um momento ruim...
-Momento ruim? Com certeza há algum engano. A vida inteira a coitada sofreu. Sempre rejeitada, se rejeitando, passou a vida economizando para a cirurgia, quando finalmente ela vai resolver seu problema vem um canalha de um médico charlatão e leva todo seu dinheiro...
-Pois é, eu sei, boa parte do dinheiro fui eu que ajudei, mas estou sofrendo tanto por ela que nem pensei nisso... a gente se amava tanto... claro que eu estaria ao lado dela para resolver esse problema de saúde...
-Problema de saúde?
Todos começaram a rir no velório. O falso noivo, numa mistura de susto e indignação forjada quis saber o motivo da zombaria.
-Não havia problema de saúde, nenhum. A Iracema nasceu João, ela queria era fazer mudança de sexo!