Google+ O Riso e o Siso: maio 2013

terça-feira, 28 de maio de 2013

Frente de Libertação dos Anões de Jardim

Eu saí cedo naquele dia para trabalhar e passei o dia sentindo algo de estranho. Só quando voltei para casa percebi: o anão de jardim havia sumido!
Fiquei estarrecido. O que poderia ter havido? Roubaram-no? Enquanto vasculhava o gramado em busca de pistas, encontro o seguinte bilhete:

"Estamos com o Hércules. Ele, agora, terá uma vida melhor! Ass. FLAJ"

Não entendi bem. Quem era Hércules? o anão? Fiquei sem saber o que dizer, a quem reclamar, pensei em boletim de ocorrência, mas quem seria FLAJ? Algum amigo pregando uma peça, certamente. Que história é essa de vida melhor? Era apenas um anão de jardim, parado, estático, sem sentimentos.
Que coisa de bobo!
Fui dormir e no dia seguinte, passei o dia tentando descobrir quem era o engraçadinho que fizera isso com meu anão. Ao voltar do trabalho, encontro, em minha caixa de correio, um bilhete dizendo:

"Nós do Movimento de Emancipação de Anões de Jardim (MEAJ), soubemos do ocorrido e repudiamos veementemente a maneira como a FLAJ conduz suas atividades. Reiteramos, aqui, nossa solidariedade e afirmamos que buscaremos informações do paradeiro do seu anão, para a reconciliação".

Pensei: Pelo visto meus amigos não se intimidam com a própria idiotice. Nossa, agora eles estão entrando a sério na brincadeira. Vou esperar que logo eles devolverão.
Dois dias depois, um novo bilhete no meu portão:

Guerrilha de anões
"Não adianta, a MEAJ não poderá ajuda-lo. Nós da FLAJ acumulamos inúmeras reclamações de maus-tratos ao seu anão e o conscientizamos de seus direitos. Agora ele não quer mais voltar para casa".

"Eu, hein?! Que gente estranha, meus amigos estão realmente pirando, preciso tomar mais cuidados com quem ando", pensei logo em seguida.

E os bilhetes não cessaram. Iniciou-se uma discussão, sobre direitos dos anões, direitos dos donos de anões, qualidade de vida, jardinagem e segurança na minha caixa de correio. Descobri que a sigla FLAJ siginifica Frente de Libertação dos Anões de Jardim. A esta altura comecei a me sentir inseguro, senti que estava sendo seguido e que, talvez, meus amigos não tivessem nada a ver com o assunto.
Guerrilha de anões
Os dias se sucederam e eu fui tomando consciência dos acontecimentos. Em resumo, meu anão havia me denunciado pela baixa assepsia dedicada a ele (me chamou de sujo!); pelas péssimas condições de segurança no trabalho; que eu não havia dado treinamento de prevenção de acidentes e nem formado uma CIPA com os anões do bairro; e por tê-lo exposto a animais e "crianças peçonhentas", armadas de bolas e carrinhos de controle-remoto.
Guerrilha de anões
A história estava ficando cada vez mais cabeluda! Eu nunca havia pensado nessas condições de trabalho dos anões. Será que ele podia ter me denunciado? Mas porque ele recorreu a atitude tão extremada em vez que estabelecer diálogo comigo? Será que ele tentou e eu não dei ouvidos?
Pesquisei na internet e descobri que sete anões se suicidaram na França em um protesto.
Eu já não entendia mais nada, e, dada as reclamações do meu anão, a MEAJ que dizia me apoiar já passava a condenar meu descaso para com o pequeno.
Passei a deixar bilhetes também, no meu portão, com o intuito de estabelecer diálogo e entender melhor o que se passava! Tentei explicar que não era sequestrando meu anão que eles mudariam as coisas. Responderam que eu não tinha envergadura moral para dize-lhes o que fazer. Retruquei que pouca envergadura tinha o objeto que me levaram. Seguiu-se que eles baixaram o tom da discussão. Eu falei que não me metia em baixaria. Logo disseram que minha pequenez moral me levava a trata-los como objeto. Respondi que a estatura intelectual deles não os permitia distinguir coisas de seres.  Eles receberam isso como provocação e me lembraram que eu era um bacharel.
-Ahá! a palavra bacharel não vem de baixo, nem de pequeno - eu disse.
Em seguida eles me enviaram:
"Não tem a ver com tamanho, mas é que nós possuímos pós-doutorado. Quem está abaixo de quem, hein?".
Pois é, diante disso, calei-me e busquei compreender melhor minha baixeza no trato com meu ex-anão de jardim.

CONTINUA...

domingo, 26 de maio de 2013

Da Vinci na Babel do Tempero...


por Dr. Delfino Anfilófio Petrúcio*
(palhaço e para-guru filosofático de Quinta Categoria, PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostosura, formado pela Universidade de Modéstia, com pós-graduação em Coisíssima-Nenhuma-e-Algo-Mais)
Quando eu me afastei do meu amigo, o palhaço Genecésico Fofo Pessoa, para ir ver que furdúncio era aquele ao redor da churrasqueira do meu editor Dom Vespúcio, ainda encontrei um lapso de tempo para me chocar ao ver minha fiel escudeira e secretária, dona Bertha, postar-se diante dele e simplesmente levantar a blusa, exibindo-lhe o par de seios despencados dos píncaros dos seus mais de setenta anos de idade... Sei que Genecésico tem todas as condições de arcar com as surpresas que se lhe apresentam ao caminho, mas confesso: não sei de onde foi que dona Bherta tirou a prestimosa ideia de usar seus jurássicos peitos para distrai-lo com um mórbido malabarismo, feito aquele que ficou a fazer, usando as mamas e o medalhão de Santa Santa da Santíssima Santidade.
Cada espaço tem seu tempo e cada cena tem seu foco! (Gostaram da frase? Sinto que ela tem um efeito bacana, causa uma forte impressão de “bagagem”, não causa? Eu acho isso o must!) Conforme eu ia me aproximando do epicentro do furdúncio, ficava cada vez mais claro que o ser humano ainda não desistiu da velha Babel. Ao me ver, Da Vinci apontou com toda força a própria cauda para o céu, levantou as duas orelhas enormes e literalmente galopou na minha direção, arfando e gemendo uns latidinhos entrecortados, como se tivesse visto realmente uma luz no final do túnel. Eu o acarinhei um pouco, atento ao vozerio que me chegava da churrasqueira...
– Mas cadê o sal? – gritou o gordão com cara de foca para um palito-branquelo.
– Tem sal grosso e sal fino.
– Você pode tirar o seu narizinho do picadeiro, seu biltre, que eu é que não vou me rebaixar a comer algo temperado com sal grosso! Ah, mas não vou mesmo, era só o que me faltava!
– Ah, é?! Melhor, sobra mais!
– Pois que se entupa, esfomeado da plebe!
Logo vi onde é que eu estava metendo o meu nariz, ali. Dom Vespúcio, o anfitrião, olhava taciturno para cada lado, cada qual argumentando e rebatendo os argumentos contrários com paixão sem cabimento. Enquanto eu tentava me localizar e analisar as possibilidades de intervir propositiva e acertivamente, Da Vinci gania de fome, empertigado com a caixa que continha a minha Máquina do Tempo, trazida ao churrasco do meu editor (sei lá porque cargas d´água) por dona Bherta...
Logo vi que a coisa era bem maior do que aparentava a olhos nus. Além da contenda classial que se configurava entre os que exigiam o sal fino em detrimento de quem não estava nem aí para o babado e o sal grosso estava de bom tamanho já que o destino da gostosura é o mesmo seja que tempero for, ou seja, “o portal do fiofó”, havia também a turma dos naturebas, com suas teorias de saúde e pureza.
– Olha pra mim, vê se eu tenho cara de antiquário? – gritou uma adolescente, com o dedo em riste e a outra mão agarrada na própria anca. – Sou moderna, fina flor da civilização, tão entendendo? Meu negócio é sal refinado, iodado.
– Então vai comer plástico, guria! – gritou uma velhota, abanando e quase esfregando nas fuças da garota uma receita escrita a mão por seu avô.
Eu precisava tomar algum partido, interferir naquele caos para harmonizar as energias e defender o meu naco, já que meu estômago começava a fazer de meu duodeno o seu aperitivo. Mas confesso: não tinha a menor ideia de por onde começar, em meio àquela guerra...
– Você é uma anta, não sabe o que diz!
– Anta, eu? Você que é um hipócrita tentando aliciar as pessoas para se beneficiar!
– Hipócrita é você!
– Você é um hipócrita.
– Você que é um hipócrita.
– Você é um hipócrita.
– Você que é um hipócrita.
– Você é um hipócrita e um safado.
– Você que é um hipócrita! depois de alguns segundos ele percebeu: Safado? Safado? Safado é você seu mentiroso!
Dei uns passos e me aproximei do epicentro, mal percebendo o desespero de Da Vinci, abanando furiosamente a cauda e cafungando com toda força a caixa que continha minha Máquina do Tempo.
Cheguei com um sorriso pensado, certo de que seria o suficiente para trazer a turba enfurecida ao auto-controle. Agora... de onde tirei a ideia de que isso, somente isso, seria suficiente, creio que deva creditar a um grau de arrogância de minha parte.
Quem antes assistia e tomava partido passou a ser espectador daquele circo de horrores, capitaneado pelos mais apaixonados, ao centro do debate, tentando agitar os demais e arregimentar adeptos. Mas havia a fome. Da Vinci, a essa altura do campeonato, ao invés dos latidos gritados, já chegara às raias da guerra e, deitando-se de costas, usava a própria coceira para alvejar os debatedores com suas melhores pulgas, de tão esfomeado que se sentia. E não arredava o pé de perto do contêiner contendo minha Máquina do Tempo...
Enquanto o dantesco debate girava em torno do modo mais conveniente de se temperar um churrasco, ou talvez do modo mais tradicional, ou o mais prático, o mais saboroso, Dom Vespúcio girava em torno de si mesmo, certamente crente de que, assim, estava de alguma forma buscando encaminhar o perrengue. Aproximei-me e perguntei o que ele achava daquilo tudo. Sua resposta me deixou preocupado:
– Enquanto umas barrigas berram, Delfino, outras roncam...
– E o que você conclui disso tudo, Dom Vespúcio?
– Que é assim, justamente assim que caminha a humanidade!
Percebi que não havia mais tempo algum: eu precisava agir. Olhei para trás e encontrei dona Bherta ensinando Genecésico Fofo Pessoa a desatarrachar os parafusos da caixa para liberar a minha máquina. Não estava sendo uma tarefa nada fácil, pois Da Vinci, tão eufórico que estava por finalmente ter conseguido um nível de comunicação salutar com algum ser humano daquela paróquia, não deixava o serviço ir a triunfo, de tanto que pulava de um lado para o outro, passando por cima da caixa e, assim, mais atrapalhando do que contribuindo.
Dona Bherta não ia conseguir sucesso algum, tendo Fofo por parceiro, pois, a essa altura do campeonato, lá estava ele já aboletando-se em uma senhora que se abanava de tanta fome:
– Se a senhora me permite um aparte...
– Mas eu nem falei nada, palhaço!
– Sim, mas o silêncio, sem dúvida nenhuma, é de uma eloquência tamanha quando a alma não é pequena...
– Tá tirando um sarro da minha cara só por causa dos meus dois metros de altura, é?
– De forma alguma, já que estás mais perto da sapiência divina do que nós, meros mortais, e se me permite a ousadia, tenha-me entre os seus, já que por meu lado eu também não conto entre os nanicos da sociedade comum...
– Tá me importunando por que, posso saber? Tem alguma novidade, alguma notícia sobre o tempero ideal pra essa m... de carne que não sai nunca?
– Sim, sim, justamente nesse sentido estamos tentando desparafusar aquela caixa...
– E eu com isso?
– Talvez a senhora, no alto de sua inteligência, tenha condição de esclarecer algo de suma importância para que eu tenha condições de esclarecer à Dona Bherta, aquela gentil senhora, o motivo pelo qual o parafuso fecha para a direita e abre para a esquerda. Seria, talvez, por alguma questão político-ideológica, senhora?...
– Sem dúvida, claro. Enquanto eu explico, o senhor prefere ir catar coquinhos ou ir ver se eu estou lá na esquina?
– Bem, considerando o quadro de fome geral, creio que, se eu for catar coquinhos e eles não existirem em quantidade suficiente para essa quantidade de convivas. Agora, eu até poderia ir checar se sua simpática presença estaria impressa na próxima esquina, mas me depararia com dois pequenos revezes: o primeiro é que, segundo Newton, um mesmo corpo não pode estar, ao mesmo tempo, em dois locais físicos diferentes, não é? E, mesmo que possível fosse, não vejo esquina alguma por aqui, senhora...
Nesse momento, antes que o guarda-chuva da mulher lhe acertasse em cheio o Terceiro Olho, Fofo agachou-se e o guarda-chuva foi espatifar-se bem no centro da caixa, abrindo-a imediatamente, para o desespero alegre de Da Vinci, que rolava de um lado para o outro no gramado, chamando a atenção de todos, inclusive de Dom Vespúcio, que (sabe-se lá por que cargas d´água) estava regando suas papolas, nesse momento.
– Ah! Muito gentil, obrigado, senhora! – curvou-se Fofo Pessoa, livrando-se de uma bofetada que atingiu a própria remetente, fazendo-a rolar colina abaixo, feito um palito em queda vertiginosa.
Chegamos todos juntos, Dom Vespúcio, eu, Dona Bherta, Genecésico Fofo Pessoa e Da Vinci, seguidos de alguns curiosos, que, por sua vez, já acenavam para outros curiosos em potencial. Cercamos a máquina do Tempo, cujo forte zumbido já estava substituído por um chacoalho geral, típico de quando está para finalizar o transporte de alguém importante, vindo de algum ponto da História Humana...
E, de repente, a fumaceira de sempre e o silêncio...
– Vocês querem falar sobre o sal? Vamos lá...
Era Gandhi, o Mahatma em pessoa.
(to be continued...)
* Doutor Delfino é o alter-ego do escritor Carlos Biaggioli (biaggiolic@yahoo.com.br)

Continua em: De 14-bis, Moisés e Gandhi tiram o sal de Mongaguá

Link Relacionado: Churrasco de Domingo

terça-feira, 21 de maio de 2013

O Siso e o SAC

Siso e o SAC
Aí um dia eu resolvi comprar um treco pela internet. Site de compra coletiva. Era uma dessas miudezas que, se for parar para pensar, o frete sai mais caro que o produto!
Fiz mesmo para testar. Se for para perder dinheiro, que seja pouco. Fiz o pedido e recebi a confirmação logo após pagar. Essas empresas são bem eficientes neste aspecto: a cobrança sempre chega...
Recebi um e-mail no dia seguinte dizendo que eu deveria ativar meu cupom. Como assim ativar o cupom? O simples fato de pagar não ativa?

-Olha, eu naveguei na sua página, escolhi o produto, comprei, paguei, mas não quero receber não. Foi só um exercício para passar o tédio...

Por que será que a porcaria do boleto é ativado automaticamente, a porcaria do e-mail de confirmação é ativado automaticamente e a porcaria do e-mail para mandar ativar o cupom é ativado automaticamente, mas meu cupom não?

Bom, ativei.

Espero uns dias e nada de encomenda chegar, nem outro e-mail de ativação nem nada. Resolvi mandar um e-mail perguntando. Cliquei em responder e adivinhem a resposta! “Não foi possível alcançar o destinatário. Essa é uma mensagem automática...”.
Depois de passar dias procurando, achei o lugar certo para perguntas, me avisaram que, além de ativar o cupom, eu tinha que fazer o pedido!
Ótimo, até agora eu estava apenas sacaneando na net, pagando boletos só para me divertir! Agora sim, eu iria comprar de verdade. Demonstrar minha verdadeira intenção de receber o produto.
Depois de uns quinze dias esperando e tentando contato, consigo falar com o SAC. Foi algo como “vou estar abrindo o protocolo e estar encaminhando sua dúvida e logo logo estarei entrando em contato com o senhor para estar enviando o produto solicitado”. Minha cabeça girava de tanto gerúndio.
Mais alguns dias e entrei em contato novamente. Quem me atendeu foi outra pessoa. Mais econômico no gerúndio e mais exigente de documentos, protocolos e outros números astrais.
Lá pelas tantas, há duas horas no telefone, num labirinto de exigências e solicitações, me senti o próprio Kafka enfrentando uma estrutura anônima do outro lado da linha.

-Escuta, meu amigo, todos esses dados eu já preenchi no cadastro quando comprei, preenchi de novo quando ativei o cupom e mais uma vez quando encomendei o produto! Vou ter que repetir mais o quê?
-Olha senhor, peço que se acalme para podermos continuar nossa conversa.
-Mas eu estou calmo. Por enquanto...
-Sarcasmo não adianta, senhor!  Isso não nos ajudará em nada!
-Sério? Então o que ajudará?
-Senhor, se continuar falando assim comigo irei encerrar a ligação.
-Falando de que jeito, meu Deus? O que mais eu preciso te fornecer? Quais dados meus estão faltando para você enviar o maldito produto?
-Senhor...
-Senhor o quê? Mas que caralho! Agiliza logo essa merda, seu filho da puta!
-O senhor não deveria falar assim comigo, senão...
-Senão o que?
-Você não me conhece! E eu tenho acesso a todos os seus dados!
-Ah, vagabundo, quer dizer que agora você tem acesso a todos meus dados, né? Por que ficava me fazendo repetir? E daí que você sabe meu endereço? Acha que tenho medo de você seu merdinha borra-botas? Você é homem suficiente pra aparecer aqui na minha casa?
-Você duvida? Continua me xingando!
-Ótimo seu corno, filho da puta, vem aqui então! E aproveita pra trazer minha encomenda!

terça-feira, 14 de maio de 2013

Cinquenta tons de cinza


velhinha 50 tons de cinza
A senhorinha entrou na livraria e foi logo pedindo “quero o Cinquenta tons de cinza”. A idade avançada causou estranheza, os vendedores se entreolharam, ela mal enxergava, mas percebeu o clima de inquietação.

-Ouvi dizer que o livro é muito bom!
-É, depende o gosto da pessoa, na verdade. Tem gente que adora e tem gente que odeia.
-Mas ouvi dizer que tá vendendo muito, né?
-Ah sim. Isso sim! É um dos mais vendidos no mundo todo. Aqui na livraria foi o mais vendido nos últimos meses.
-Então não deve ser ruim.

A senhora segurava os óculos e apertava os olhos enquanto examinava capas expostas nas prateleiras. O vendedor permanecia parado sem saber se buscava o livro ou se alertava sobre o conteúdo. Essa história de sadomasoquismo não parecia a onda a velhinha.
Por um instante ele imaginou a senhorinha centenária vestindo roupas de couro justinhas e chicote. O salto-alto inflamando as artrites e repuxando o bico-de-papagaio. Não sabia se ria ou se chorava! Com aquela idade ela poderia ter um treco e morrer se o livro a assustasse, ou pior, se a excitasse. Então ele hesitou. Pela sua experiência, de mais de um século de vida, ela era como um desses jabotis enormes e antigos, cheios de ranhuras na casca, demonstrando imponência, apesar da fragilidade da idade, mas acima de tudo, demonstrando entender tudo o que está em sua volta, ainda que em slow motion.

-Não é para mim não – ela riu – eu mal enxergo, não conseguiria ler nem se ele viesse com letras de outdoor. É para minha bisneta! Ela é uma menina linda, muito esperta, adora ler, desenhar e entende muito de combinar cores. E eu aposto que ela ainda será uma grande estilista!
O rapaz respirou aliviado. A senhora realmente mal conseguia ler o nome da livraria no letreiro, imagina ler um livro. É claro que seria para presente, mas que bobagem!

Ele buscou o livro, ela pagou, foi embora para casa enquanto ele imaginava, agora, a bisneta vestida de couro, uma bota com salto agulha longos cabelos castanhos dominando os homens a sua volta. Ele quase se apaixonou.

Enquanto isso, em casa, a bisneta devorava, num canto, o livro que tinha uma gravata cinza elegante na capa. Ela arregalava os olhos nas partes mais picantes e fazia caras de nojo. Ela tinha só dez anos e a bisavó jurava que, se ela aprendesse a combinar os tons de cinza, ela seria uma grande estilista.

domingo, 12 de maio de 2013

De presciente e onipotente todo louco tem um pouco


por Dr. Delfino Anfilófio Petrúcio*
(palhaço e para-guru filosofático de Quinta Categoria, PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostosura, formado pela Universidade de Modéstia, com pós-graduação em Coisíssima-Nenhuma-e-Algo-Mais)
Não é muito comum isso acontecer, mas resolvi aceitar o convite de Dom Vespúcio e fui, na companhia de meu amigo, o Palhaço Genecésico Fofo Pessoa, a um churrasco oferecido em casa de meu prestimoso editor. Afinal, sabem como é que é, não é? Não sabem? Bom, tudo bem. No fim das contas, até hoje eu questiono se até mesmo o Sabiá sabia realmente assobiar...
O gramado da mansarda de meu editor estava repleto de crianças, cachorros brincando e muita gente falando pelos cotovelos. A convite de Genecésico, sentamos-nos sob um frondoso pé de laranjas limas, a espera de que alguma delas despencasse sobre nossas cabeças, fazendo-nos parir ideias fabulosas. Mosquito vai, moriçoca vem, ele resolveu puxar assunto – algo leve, ameno, assim... para distrair enquanto não passavam a bandeja com espetinhos de bolhas de sabão grelhadas.
– Delfino, seu tratante.
– Hum...
– Você acredita na presciência de Deus?
– Fofo!!! Você tem certeza de que quer mesmo conversar sobre algo tão... tão... tão... trivial? Há tantos assuntos mais relevantes, tais como as diversas embocaduras que o ser humano consegue produzir para tirar música ao expelir seus próprios gases...
– Hoje é domingo, dia de descanso, doutor! Vamos relaxar, falar de coisas mais amenas, que tal?
– Deus?! Oquêi... Presciência, então.
– Vem comigo, então... Se Ele sabe tudo que vai acontecer, por que diabos...
– Ops!!!
– Foi maus. Por que Ele deixa o Mal acontecer?
– Bem, deve ser pelo mesmo motivo que o trapezista se lança no vazio, na certeza de que tem um braço pra apanhá-lo ou a rede, lá embaixo, pra ampará-lo, sei lá...
– Não vi muito cabimento no que acabou de dizer, mas, se foi dito por você, pode ser...
Apanhei e sorvi quase num só gole um copo duplo de groselha com polpa de gargalhada concentrada – faz bem pro fígado, Atadolfa, minha esposa, praticamente me obriga a tomar um desses dia sim e dia com certeza...
– Então, tá! Ele tem ciência de tudo...
– Bingo. Vamos rolar um pouco na grama agora, Fofo?
– Vamos, sim... Mas, antes, me diz...
– Ai!
– Como pode Ele castigar um erro que Ele já teria ciência, que já estaria pré-anunciado?
– Bem, creio que...
– E, se o tal do erro já estava anunciado é porque era predestinado, não acha?
– Ah, o Destino! O que é o Destino senão o desatino com o qual me afino e desafino, na propina que me ensina o sol a pino?
– Anh?!
– Nada. Só uma sequencia de rimas, pra não perder o traquejo, Fofo. Falávamos sobre o que, mesmo?
Nesse momento, uma algazarra fora do comum começou a chamar a minha atenção. Um grupo de pessoas gesticulava eloquentemente ao redor da churrasqueira. Devia ser algo de fato muito acalorado, pois, ao redor delas, havia já uma boa quantidade de gente, meio que na condição de “torcida”. Fiquei curioso e tentei ir para lá, porém, ao me levantar, bati com a careca num galho baixo e uma laranja lima despencou sobre o meu cucuruto.
– MERDA!
– Não!!! O nome certo é EUREKA, Delfino!
– Que seja...
– Teria essa laranja sido predestinada, meu caro doutor?
– Sei lá, mas vou mandá-la pro bucho e é agora mesmo...
– Delfino do céu! Você não vê?
– Sim, claro que vejo. Vejo uma churrasqueira soltando um bom bife de risada acebolada, saindo no ponto... E, pelo jeito, tá rolando um fuzuê ali, porque...
– Delfino! Se tudo é predestinado, então não existe o tal do “livre-arbítrio”, percebe?
– Percebo que aquela colina deve estar uma delícia pra descer de tabua-esqui, isso sim!
– Sim, sim, mas, antes, me diz: se o livre-arbítrio existe, é porque ele não é algo determinado, certo?
– Ah, a Liberdade! Idade da verdade que arde na parte mais beldade que há na verdade das idades...
– Rimas, de novo?
– Não. Falta de assunto, mesmo...
A coisa ao redor da churrasqueira estava esquentando. Havia um grupo de pessoas de cada lado, isso estava cada vez mais claro. E um cachorrinho aflito, abanando histericamente a cauda, aparentemente tentando chamar a atenção dos dois lados da contenda. Dedos em riste e indicadores apontados entrecruzavam-se compondo um cenário de... de... embate... E Genecésico não largava do meu pé!
– Então, Delfino, meu caro, se o livre-arbítrio é algo não-determinado, logo Deus não sabe!!!!! EUREKA!!! E sem necessidade nenhuma de laranja no meu cucuruto-da-longa-testa!!!
– Fofo... está acontecendo alguma coisa ali na churrasqueira, você não está percebendo?
– Deus que sabe!!! Ele não sabe tudo? Se Ele sabe tudo, então é “destino” e não “livre-arbítrio”, concorda?
A coisa estava engrossando lá... e pelo eco consegui perceber que o perrengue girava em torno da questão do sal... Sal??!!!
– Vamos já pra lá, Fofo. Parece que a coisa lá tá séria...
– Vamos, vamos, claro. Mas reconheça, antes: se Deus tem presciência, quer dizer que Ele sabe!
– Sabe, sim. Pronto, vamos lá agora...
– Mas se Ele sabe e mesmo assim tem a questão do livre-arbítrio, Delfino, então o Dito-Cujo só assiste...
– Sim, de pleno acordo. Mas vamos lá, que o bicho está pegando... e isso pode interferir na minha comida. E eu estou com uma fome daquelas, Fofo!
– Sem dúvida, sim. Mas, antes, me conta: Deus não interfere no livre-arbítrio!
– Não...
– Mas Ele é presciente, então o livre-arbítrio seria algo predeterminado!
– Sim...
– Então, não é livre-arbítrio!
– Não...
Odeio quando Genecésico entra nessa vaibe. Não por suas ideias, que são sempre muito boas... Mas ele realmente precisa ficar de pernas para o ar, remelexendo daquele jeito melecoso os vinte dedos dos pés e o quadril?
– Fofo, eu vou ver o que está acontecendo lá, você vem?
– Claro que vou, calma. Só quero chamar a sua atenção pra um pequeno detalhe...
– O Sal, doutor!!! O SAL!!!! – era dona Bherta correndo desengonçada na nossa direção. Como é que ela sabia que eu estaria neste churrasco?
– Fofo, eu não posso ficar mais tempo nesta conversa...
– Você não pode porque não é Onipotente, como Deus costuma se chamar!
– Anh?!
– Como é que Ele pode, não podendo? Se é assim, Ele não é onipotente!!!
– Doutor, Dom Vespúcio precisa da sua ajuda, doutor... – dona Bherta estava realmente aflita e, mesmo sabendo que aquilo me contrariaria muito, apontava para um baú que trouxe do meu consultório. – Sua máquina do Tempo, doutor. Acho que vai ser útil, naquele furdúncio...
Sem prestar mais atenção a nada que não fosse o baú, tomei o rumo da churrasqueira, com Fofo blablablando no meu encalço...
– É possível um Deus que, ao mesmo tempo, seja onipotente mas não tenha pré-ciencia das coisas, Delfino?
– Pergunta pra ele, Fofo!!! – realmente aquilo estava começando a me irritar.
– Eu pergunto! Mas Ele não responde... Então, fico perguntando a mim mesmo: se Deus sabe tudo que vai acontecer, por que Ele deixa acontecer? E como Ele pode castigar um erro já anunciado? Se já é anunciado, é porque é predestinado, então, assim sendo, não há livre-arbítrio, portanto não é algo determinado! Não sendo algo determinado, então, meu caro, quer dizer que Deus não sabe! Mas Ele não sabe tudo?! Então é destino e não livre-arbítrio!
– Dona Bherta, tente trazer meu amigo Genecésico de volta, por favor...
– Pois não, doutor, mas ande logo, porque a coisa ali tá saindo dos eixos e o senhor precisa agir rápido.
– Depois vamos conversar, viu, dona Bherta... sobre a senhora aparecer aqui, e ainda mais trazendo minha máquina do Tempo...
– Sim, sim, depois, depois... Agora vá!
Dito isso, eu me afastei, mas não sem ter me chocado ao ver dona Bertha parar diante de Genecésico Fofo Pessoa e simplesmente levantar a blusa, exibindo-lhe o par de seios despencados dos píncaros dos seus mais de setenta anos de idade...
(to be continued...)
* Doutor Delfino é o alter-ego do escritor Carlos Biaggioli (biaggiolic@yahoo.com.br)

terça-feira, 7 de maio de 2013

A maldade é feminina


O casal era novo, recém-casados, no período, ainda, de avaliação e adaptação. Um daqueles casamentos de paixão arrebatadora. Poucos meses de namoro. A moça disse só depois de casar... O rapaz disse caso. Logo discutiam os presentes recebidos no aniversário de um sobrinho.
-É um absurdo! Onde já se viu? Dar uma arma de brinquedo pra uma criança...
-Que é que tem?
-Como “o que é que tem”? É um incentivo à violência!
-Como um revólver de plástico tão fajuto, ou uma espada de borracha podem ser um incentivo à violência? São só brincadeiras de criança...
-Que simulam a violência...
-Mas a simulação, que, não necessariamente tornará o moleque violento.
-É a banalização.
-Isso é histeria.
-Histérica é tua vó!
-Eu brincava de mocinho e bandido, dava tiros imaginários, já fui mocinho e já fui bandido e hoje não sou nenhum marginal! Sou pacífico, você teria se casado se eu não fosse?
-Percebe-se...
-O quê? Percebe-se o quê?
-Que você foi mimado e esses tipos de brincadeiras eram comuns na sua infância mas você não é pacífico, só é um bunda-mole...
-Como assim? Acha que eu tenho medo de confusão?
-Não precisa ser profissional para te compreender, é óbvio!
-Então eu nunca seria um bandido mesmo brincando de arminha? Tá vendo como não depende do brinquedo?
-Pelo contrário... você é só um garoto mimado, não tem cacife pra bandido e morre de medo de qualquer discussão. Por isso não virou marginal e por isso sempre baixa a cabeça para o que eu digo!
-Claro que não... é só que... é só que...
-Ah vá, você nem consegue reclamar quando esfolo o para-choque do seu carro... e olha que já fiz de propósito só pra ver se tinha coragem!
-Ah isso é pouco. Isso não conta. Carro a gente conserta!
-Tá, e quando estraguei sua camisa do Corinthians com cândida?
-Camisa a gente compra outra...
Muito feminina
-E quando pintei seu pitt bull de rosa e falei que foram vândalos?
-O Thor? Foi você? Por que você fez isso?
-Pra você parar de pagar de pitt boy com ele na avenida! Pensa que eu não sei?
Ele estufou o peito, decidido a provar que era um encrenqueiro da pior espécie, capaz das maiores confusões, levantou, deu alguns passos em direção à porta e disse:
-Sua gorda!

sábado, 4 de maio de 2013

Nem todo caso é, por acaso, um caso de caso...

Por Dr Delfino Anfilófio Petrúcio
(palhaço pára-guru filosofático de Quinta Categoria, PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostosura, formado pela Universidade de Modéstia, pós-especializado em Coisíssima Nenhuma e Algo mais)

... e digo mais, sem a menor sombra de dúvida: essa minha bendita máquina do tempo, até o presente momento, só me trouxe dores de cabeça, isso sim.

Depois das inúmeras investidas de minha secretária, a septuagenária dona Bherta, “fiel escudeira deste maluco inveterado” (palavras da própria), cheguei a encaixotar a traquitana, certo de que o melhor seria mergulhá-la no epicentro do mais profundo oceano do planeta, na esperança de que as gerações do porvir o encontrassem e dele fizessem melhor proveito. No entanto, vejam só como as coisas se dão...

Estava eu já a torcer o último parafuso do encaixotamento, quando a geringonça, lá dentro, simplesmente deu ares de vida – própria! Confesso que aquilo me paralisou, justo a mim, tão calejado na arte de surpreender os outros. Como assim? Minha máquina do tempo resolveu funcionar à minha revelia? Desparafusei o caixote e me deparei com a máquina do tempo a pleno vapor. Mas como!? Mal acionei o botão verde e PUFFF!, ei-lo em carne e osso, já sentado em meu divã...

– Doutor Delfino Anfilófio Petrúcio?
– Sim, eu mesmo, mas...
– Pára-guru filosofático de Quinta Categoria
– Não que eu seja de me gabar, mas... enfim... sim, eu mesmo.
– Muito prazer. Anjo Gabriel!
– ...?

Havia algo de errado naquela Dinamarca! O tal do Anjo não era loiro? Cabelos encaracolados e dourados esvoaçantes ao vento do sol matinal? Olhos cor de mel? Envolto em alvo manto de estrelas do Oriente? O ser que estava diante dos meus olhos era um oriental loiro de olhos azuis e pele cor de pura África! Levei um longo tempo tentando concatenar isso tudo...

– Ora, por favor, doutor, me poupe, vai! Preciso de sua ajuda profissional.
– O senhor teria... não me leve a mal, por favor, só por uma questão de segurança... o senhor poderia... claro, se não for pedir muito, claro... o senhor poderia por favor... me mostrar alguma identificação?... Só em nível de...

Segundo após um olhar de profundo e imenso enfado, Gabriel começou a saculejar os ombros, do sutil ao mais frenético ritmo, e repentinamente CATAPLAFT!!!, eis diante dos meus olhos um imenso e dourado par de asas aberto, movendo uma onda de ar por todo o consultório, com delicioso odor de... Anjo. Percebi que havia uma parte faltando na asa esquerda...

– O senhor reparou? Bem, estive em Boston, assistindo àquela corrida... Preferia, se o senhor não se importar, pular essa parte e irmos direto ao assunto, poderia ser?
– Sim, sim, claro. É sua primeira consulta, não é? O senhor por favor me diga: em que posso ajudá-lo, senhor Anjo?
– Gab.
– Como? Ah, sim, sim... Bem, senhor Gab, eu...
– Somente Gab.
– Ok, Gab. Qual é o seu caso?

Subitamente o Anjo empertigou-se todo, deitado em meu divã. Olhou para todos os cantos da sala, como se buscasse ou procurasse algo... ou como se estivesse a me confidenciar algo muito secreto.

– Esse é que é o problema, doutor! Fui envolvido numa trama... e acabei saindo com fama duvidosa...
– Do que o senhor está falando, Gab?
– Você, por favor. Me trata só por você.
– Do que você está falando, Gab?
– Aquela história toda, o senhor sabe... O Chefe mandou eu trazer um recado, eu só fiz isso, obedeci uma ordem, tava no horário do meu expediente, é o meu trabalho. O senhor entende, não entende, doutor Delfino?
– Hum... – isso sempre funciona quando não sabemos o melhor rumo a ser dado à prosa.
– Tem culpa eu?! – gritou ele, mais por desabafo do que por fúria. – Tem, doutor
– Hum...
– Também acho que não, claro. Época antiga, não é como hoje, com email, telefonia, serviço de correios e médium treinado pra receber e retransmitir as ordens do Chefe! Os sonhos eram o único jeito, naqueles tempos! Aí é que tá o meu azar...
– Hum...

Já vi que era mais um típico caso de culpa recalcada. Toquei a sinetinha e não demorou nadica para dona Bherta (morta de curiosidade satisfeita) aparecer derretida em sorrisos, trazendo uma baixela de bolinhos de chuva com chá de cócegas fresquinho. Evidentemente, assim que serviu, ajoelhou-se diante do paciente e ficou a saudá-lo como fazem os islâmicos na hora de sua reza. Que vexame! Mas já faz tempo que descobri que o melhor a fazer numa ocasião assim é deixá-la ir até o fim, senão: é gafe puxando mais gafe...

– Prossiga, por favor. Qual é o seu caso, então, Gab?
– DOUTOR, POR FAVORRRR!!! Não houve caso algum, não está me escutando? Isso é tudo maledicência desse povo que adora uma boa fofoca milenar!
– Hum...
– O Boss me chamou na sala dele, com urgência. Lá vou eu! O senhor sabe como é que é: Anjo que é Anjo tem toda uma reputação a ser preservada. Então lá vou eu até o Gabinete da Chefia, haja asas pra suportar uma subida de mais de quinze mil nuvens e ainda ter que encarar uma cavalgada de muitos dias e meses no lombo de um Alazão de Fogo até chegar no gabinete e receber a ordem: “Avise aquela moça que já está na hora de ela gerar um Filho”!

A ficha caiu com o peso de um contêiner!

– O senhor... quer dizer, você... está se referindo ao...
– É, é! Aí a criatura sonha e, quando acorda, mistura tudo o que foi sonhado... Eu juro, doutor, que eu dei o recado. Mas sonho quase sempre vira telefone-sem-fio, né!
– Mas no fim tudo parece ter dado certo, não foi?
– Certo? Ah, sim!!! Muuuuuuuito certo!!!! – estava mais do que furioso: em estado pré histérico, o coitado. – Ninguém faz ideia do que passou aquele pobre Carpinteiro, esposo da moça...!!! É por isso que estou aqui, doutor...
– Para tentar trabalhar a culpa, o remorso...
– Nada disso! Vim marcar uma consulta pro marceneiro, doutor? Acho que domingo é um bom dia pra isso, porque o coitado trabalha até...

Nesse momento, um fuzuê absurdo na recepção do consultório interrompeu o fluxo da terapia em curso. O que é raro, porque esse prédio é tão velho e surrado que mal aparece na via pública. Dona Bherta estava alteradíssima, podia ouvir seus gemidos da minha sala:

– Os senhores tem hora marcada, tem? Pensam o que? Que aqui é a casa da sogra, é? Pois tirem seus cavalinhos, ou melhor, tirem seus sapatões da chuva porque eu acabei de encerrar o piso e... Esperem!!! O doutor está atendendo um Anjo lindo de morrer lá dentro, não pode ser interrompido!!!! Mas que absur...

Tarde demais, três homens encapuzados entraram no consultório, esfregando no meu belo narigão vermelho os seus distintivos de policiais. Um deles já se posicionou às minhas costas, com uma das mãos em meu ombro, deixando claro que levantar-me era algo fora de cogitação. O segundo, colocou-se diante de Gab, ao passo que o terceiro policial fez a abordagem direta.

– O senhor é Gabriel, o Anjo?
– Sim, desde milhões de anos. Mas já vou avisando: eu dei o recado corretamente. A moça é que distorceu na hora de interpretar o sonho e...
– Levante-se e coloque suas mãos nas costas.
– Esperem – intervim. – Ele é meu paciente, está sob custódia profissional. Sou pára-guru filosofático de Quinta Categoria...
– ... PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostura... – emendou aquele que estava às minhas costas.
– Propaganda enganosa! – sussurrou o segundo, que se mantinha estrategicamente atento aos movimentos do Anjo durante a abordagem do colega.
– Mas eu já disse que sou inocente. Não fiz nada. Foi obra do Divino!
– O senhor está sendo acusado da morte do grupo musical Mamonas Assassinas, senhor Anjo...
– Você. Pode me chamar de você. Tamojunto! E misturado! Mas que? O que significa essa acusação? Eu não sei quem ou o que é isso aí que o senhor falou...
– Um pastor evangélico afirma em vídeo disseminado na internet que foi o senhor, a mando de seu Chefe, que segurou o manche do avião desviando sua rota para uma colisão fatal com uma montanha.
– Mas eu sou inocente! Por que diabos... Ops!!! Perdão, Chefia! Por que diachos eu faria uma coisa dessa com alguém?
– O tal pregador alega que foi em nome de Deus, indignado com a irreverência das canções compostas pela banda musical que se tornou ídolo da criançada...
– Eu sou inocente!
– Sim. Claro. Todos são... O senhor tem o direito de permanecer calado, qualquer coisa que disser poderá ser utilizada contra sua defesa.

Ficamos em silêncio horas a fio, dona Bherta e eu, comendo bolinhos de chuva e tomando chá de cócegas... insosso.

* Palhaço Delfino é o alter-ego do escritor Carlos Biaggioli (biaggiolic@yahoo.com.br)