Google+ O Riso e o Siso: outubro 2013

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Vida de condomínio: Sabedoria popular

Há cerca de dois meses um e-mail me assombrou com um item na coluna de gastos, indicando mil e seiscentos reais com quatro tapetes. Era a prestação de contas do condomínio. Os quatro tapetes seriam postos um na entrada de cada torre. Depois do assombro, veio a curiosidade. Vejam bem: mil e seiscentos reais não é para qualquer tapete. Eu desejava muito apreciar a obra exposta no hall do edifício.
A obra de arte, que deveria logo estar "disponível", como dizia o e-mail, não apareceu. Continuei minha rotina, cansada, suada, desgastada, de limpar os pés num capacho qualquer. Um capachinho simples de vinil, prático e eficiente na porta de entrada, daqueles que parecem pelos pubianos de borracha.
Capacho de vinil
Não havia registros nos anais do condomínio de reclamação contra o capacho de pelos pubianos. Pelo contrário, ele desempenhava muito bem suas funções, de forma tão discreta que muitas pessoas passavam por ele sem nem perceber. Isso era facilmente notado nas marcas deixadas no piso. Mas a questão era que, pelo valor gasto, o novo tapete deveria ser espetacular. Quem sabe não seria algo que cobrisse todo o hall de entrada. Ou melhor, um tapete tão especial que lustra seus sapatos enquanto você caminha por ele. Ou, talvez, um tapete que limpe a casa, o carro, sirva almoço, lave e passe. Eu mal podia esperar para vê-lo. Cheguei a passar noites em claro imaginando as maravilhas desenhadas na superfície. Sonhava que ele me levava para passear e visitar as maravilhas do mundo. Voando pelo planeta eu era o próprio Aladin. Fiquei até preocupado com a possibilidade de termos tamanha magnificência furtada numa noite dessas.
Dois meses se passaram e, de entrada no meu prédio, cruzo com o síndico, sorridente, estufado, pomposo saindo do elevador:
-Bom dia. E aí seu síndico, quando vamos ter o famoso tapete a ornamentar nosso humilde condomínio?
-Mas ele já está ali, meu rapaz. Você não viu?
Congelei embasbacado. Era pegadinha? Como podia, eu passei pelo tapete e não o vi? Busquei rapidamente refazer meu caminho com os olhos, não o encontrei, busquei as paredes (tem gente esquisita que gosta de pendurar tapetes em parede), também nada, comecei a me desesperar, haveriam-no roubado, antes mesmo que eu tivesse desfrutado de sua beleza? Não era possível. Cogitei, pela sua beleza e funcionalidade sem igual, ser algo destinado aos deuses e, por isso, invisível aos olhos humanos. Não sei, não sabia, não saberei, a crise existencial me tomou violentamente, eu já tentava lembrar o telefone do meu analista quando ouvi:
-Aquele ali, ali mesmo...
Venci a vertigem e recobrei os sentidos.
-Você limpou os pés nele quando entrou.
-Você tá falando do tapete de pentelhos?
-Como é?
-Você tá falando do capacho, velho, gasto, que está aí há tempos?
-Como assim? O tapete é bom! Só percebemos o valor da água depois que a fonte seca.
-Pela fortuna que você gastou, bom não basta!
-Hã? Lembre-se meu jovem: beleza não põe a mesa.
-Mas...
-A palavra é prata, o silêncio é ouro.
Entrei no elevador. Ele demorou a fechar a porta. Saí e subi dez andares de escada, de tão consternado que fiquei. Não consegui me lembrar de nenhum provérbio que o mandasse para puta que pariu. Há momentos em que a sabedoria popular é polida demais.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Experiências Highlander no SUS

Duas semanas doente, uma semana no hospital. Não consigo mais escrever. Acho que perdi a graça. "Eu vi coisas, eu fiz coisas. Eu experimentei sangue humano e o gosto é bom!".
A inocência foi perdida.

Você liga para o SAMU, chama a ambulância e quarenta minutos depois ela ainda não veio. O SAMU é para emergências! Você liga e reclama "pô, liguei chamando a ambulância há quarenta minutos e ainda nada", "o paciente ainda está respirando?", "sim", "então não era emergência, bota ele num taxi e manda pro hospital".
Já não faz sentido. É ácido lisérgico o SUS.

A atendente te pergunta: "o que você tem, senhor?", "bom, lindinha, se eu soubesse não tava aqui, tava num consultório", "Mas o que você está sentindo?", "nesse momento, ódio".
Nem hospital particular está salvando mais. Pelamordedeus, manda um cubano lá pra casa!

Após um dia inteiro de febre, sentado numa cadeira desconfortável, o braço cheio de furos e sem almoço, acho que posso integrar as forças de paz da ONU. Sou o próprio Highlander. Sair vivo dessa nem o Rambo. Só o Chuck Norris, que não é humano. Highlander tinha uma espada, né? Tô tão debilitado que só posso carregar um estilete. Ou um alicatinho de cutícula. "Vou combater o mal com meu alicatinho de cutícula". Isso é coisa de herói socialite. Formar uma liga da justiça com a Narcisa e a Val Marchiori. A Narcisa joga ovo enquanto a Val xinga o vilão de pobre cafona.

Só fui encaminhado para um leito depois da novela das 8. Acho que estavam esperando acabar para dar entrada nos meus papéis. Do médico não havia nem sinal, e eu já havia sido diagnosticado e receitado por cinco pacientes e três acompanhantes.

Quando, finalmente, me deitaram numa maca, ao lado de outras duzentas e trinta e sete macas, cada uma com um enfermo gemendo, ao meu lado um jovem de uns noventa e sete anos se esticava, virava, gemia, resmungava. A noite seria longa. Percebi uma luz forte se aproximando, abrindo passagem pelo teto. Ela vinha serena, aquecia e enchia a gente de paz. Uma voz grave, firme e bondosa soou: "Américo? Américo Neto? É você?" Era, mas ele não se identificou. Hoje em dia não dá para confiar em qualquer voz que se ouve por aí. Tá assim de caso de gente que é enganada porque ganhou no Baú, porque ganhou um carro, porque um parente foi sequestrado. Prontamente apontei para o senhorzinho deitado na maca ao lado. "Chegou sua hora, vamos". Tive a impressão de vê-lo flutuar em direção à luz, mas acho que não, ele pegou num sono tão gostoso, tranquilo, nem se mexia.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Déficit de Atenção

Sala dos professores, as senhorinhas se reúnem na hora do intervalo para trocar figurinhas e diagnosticar alunos:
Ai já descobrem que o Luizinho tem problema de atenção. Só pode. Aquele moleque não para quieto. Ai você fez aquele peixe que você falou? É déficit de atenção! Tô fazendo um curso sobre isso... Sobre o que vocês estão falando? Ah, é do Luizinho, aquele moleque endiabrado. Mas, também, ele mal sabe ler. É filé de tilápia. Pois é, é por causa do TDAH. O que é isso? É déficit de atenção, eu vi no curso que to fazendo. Ai, e aquela receita que você ia trazer? O Luizinho não pára, não dá sossego. Ah, eu mando logo ele copiar três páginas que ele fica sentado e não atrapalha, pelo menos. Mas e a receita, vai muito sal? O déficit de atenção é duro, prejudica muito o desenvolvimento. É do Luizinho, né? Isso! Ele tem déficit de atenção, ela viu no curso. É eu to fazendo um curso. Sobre déficit de atenção? E a receita? escreve ela num papel pra mim? Oi diretora, tudo bem? Gente ela precisa dar um recado. Mas o Luizinho não deixa a gente dar recado na sala. Xii, se tentar parar o pessoal pra dar recado é aí que pega fogo. Fogo? A receita fica quanto tempo? Quem fez o curso de atenção? Ai menina, já falei que não vai no fogo, é marinado, cozinha no limão. Mas o Luizinho nem isso conseguem entender, se disser marinado é capaz de dar um peteleco na Marina. A diretora quer falar! E tava fazendo o peixe mas parei na hora da novela. Gente e a Pilar que pegou o Cesar com a Aline? Ah, jura? Ontem não assisti novela, fiquei preparando material pro Luizinho. A diretora tá esperando! Sim, a gente estava falando que aquele moleque deve ter TDAH. Já tem laudo? Que laudo? Tem alguém doente? O Luizinho. Mas isso é doença? A diretora quer falar! E o que a Pilar fez? Mandou o Luizinho embora. O Luizinho? Não, o César! Olha lá, ele deixa a gente louca. É, aquele Antonio Fagundes é uma loucura!