Google+ O Riso e o Siso: Adoniran me perdoe...

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Adoniran me perdoe...


Acabou o dinheiro e foi enxotado do bar. Passou só para tomar uma dose, pois estava liso. Caminhava lá pelos lados do mercado, carregando uma sacola, quando percebeu uma movimentação no entorno de uma casa. Aproximou-se. O que havia? Inteirou-se do assunto: era um velório. "A Iracema! Lembra dela?". Não conhecia a Iracema. "Foi atropelada". Que estúpida a Iracema. "Ela trabalhava ali na rua das fábricas". Nããã, nada, nenhum resquício de memória. Iracema era uma desconhecida. Tentou fazer cara de pêsames, não conseguiu, cansou do teatro e já estava retomando o rumo quando uma ideia o iluminou. Parou, olhou para trás, buscou a janela. Isso! Velório em casa tinha sempre algo de comer e de beber. Salgadinhos para enfrentar a noite que se adensava, quem sabe um licorzinho para amenizar a tristeza...
Respirou fundo, preparou a cara de desolação e penetrou na sala. Andando cabisbaixo talvez ninguém o perceberia. Foi interpelado umas duas vezes. Tentou parecer íntimo da defunta. Errou o nome! Meu Deus, Irene? De onde saiu esse nome? Qual era mesmo o nome da infeliz? Já ensaiava uma rota de fuga quando um comentário ao lado o trouxe de volta: "Como a Iracema tá elegante no caixão!". Pronto! Iracema, Iracema, Iracema, não posso mais esquecer - ele repetia. Enquanto cruzava com bandejas de paezinhos com carne moída, e garrafas de licor e conhaque, enfiava na boca o que conseguia. Seguia em direção ao caixão. Já se sentia à vontade para arrastar uma cadeira e se instalar na cabeceira. Àquela altura a morta lhe pareceu bonita. Pensou em ampliar suas emoções.
-Talvez se eu parecer realmente íntimo, até melhore o tratamento. Vão querer me consolar, me servirão sentado. Quem sabe as melhores bebidas da despensa para aplacar minha dor... - pensou.
Passou a conversar com a falecida:
-Iracema, já há alguns dias eu vinha te procurando, Iracema! O que aconteceu, Iracema?
Repetia o nome dela no final de cada frase para dar ênfase ao desespero...
-O que eu vou fazer da minha vida sem você, Iracema?
A fala chorosa; as pessoas iam parando suas conversas para atentar ao sofrimento do homem.
-Como você foi me fazer uma coisa dessas, Iracema? Sempre te pedia para ter cuidado pela rua, Iracema! E agora? O que eu faço, Iracema? - ergueu a sacola como se mostrasse para ela - Só me restou isso de você, Iracema! Isso e a conta do sapateiro, Iracema, a conta do sapateiro...
A platéia aumentava, ele já se candidatava ao Oscar. A língua, meio pesada de bebida, criava vida...
-Iracema, faltavam vinte dias para o nosso casamento, você atravessou a São João, veio um carro, te pega e te pincha no chão. Você foi para Assistência, Iracema. O chofer não teve culpa, Iracema - e completou no auge, aclamando piedade dos demais - Paciência, Iracema, paciência.
-Meu senhor, deve haver algum engano. Acho que está lamentando pela pessoa errada. A Iracema se matou, não foi acidente. Ela se jogou na frente de um caminhão. Morreu mortinha, na hora, não teve nem chance de resgate.
-Sim, claro, eu sei, mas é que, como noivo, fica difícil aceitar que ela estava passando por um momento ruim...
-Momento ruim? Com certeza há algum engano. A vida inteira a coitada sofreu. Sempre rejeitada, se rejeitando, passou a vida economizando para a cirurgia, quando finalmente ela vai resolver seu problema vem um canalha de um médico charlatão e leva todo seu dinheiro...
-Pois é, eu sei, boa parte do dinheiro fui eu que ajudei, mas estou sofrendo tanto por ela que nem pensei nisso... a gente se amava tanto... claro que eu estaria ao lado dela para resolver esse problema de saúde...
-Problema de saúde?
Todos começaram a rir no velório. O falso noivo, numa mistura de susto e indignação forjada quis saber o motivo da zombaria.
-Não havia problema de saúde, nenhum. A Iracema nasceu João, ela queria era fazer mudança de sexo!

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