Google+ O Riso e o Siso: Nem todo caso é, por acaso, um caso de caso...

sábado, 4 de maio de 2013

Nem todo caso é, por acaso, um caso de caso...

Por Dr Delfino Anfilófio Petrúcio
(palhaço pára-guru filosofático de Quinta Categoria, PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostosura, formado pela Universidade de Modéstia, pós-especializado em Coisíssima Nenhuma e Algo mais)

... e digo mais, sem a menor sombra de dúvida: essa minha bendita máquina do tempo, até o presente momento, só me trouxe dores de cabeça, isso sim.

Depois das inúmeras investidas de minha secretária, a septuagenária dona Bherta, “fiel escudeira deste maluco inveterado” (palavras da própria), cheguei a encaixotar a traquitana, certo de que o melhor seria mergulhá-la no epicentro do mais profundo oceano do planeta, na esperança de que as gerações do porvir o encontrassem e dele fizessem melhor proveito. No entanto, vejam só como as coisas se dão...

Estava eu já a torcer o último parafuso do encaixotamento, quando a geringonça, lá dentro, simplesmente deu ares de vida – própria! Confesso que aquilo me paralisou, justo a mim, tão calejado na arte de surpreender os outros. Como assim? Minha máquina do tempo resolveu funcionar à minha revelia? Desparafusei o caixote e me deparei com a máquina do tempo a pleno vapor. Mas como!? Mal acionei o botão verde e PUFFF!, ei-lo em carne e osso, já sentado em meu divã...

– Doutor Delfino Anfilófio Petrúcio?
– Sim, eu mesmo, mas...
– Pára-guru filosofático de Quinta Categoria
– Não que eu seja de me gabar, mas... enfim... sim, eu mesmo.
– Muito prazer. Anjo Gabriel!
– ...?

Havia algo de errado naquela Dinamarca! O tal do Anjo não era loiro? Cabelos encaracolados e dourados esvoaçantes ao vento do sol matinal? Olhos cor de mel? Envolto em alvo manto de estrelas do Oriente? O ser que estava diante dos meus olhos era um oriental loiro de olhos azuis e pele cor de pura África! Levei um longo tempo tentando concatenar isso tudo...

– Ora, por favor, doutor, me poupe, vai! Preciso de sua ajuda profissional.
– O senhor teria... não me leve a mal, por favor, só por uma questão de segurança... o senhor poderia... claro, se não for pedir muito, claro... o senhor poderia por favor... me mostrar alguma identificação?... Só em nível de...

Segundo após um olhar de profundo e imenso enfado, Gabriel começou a saculejar os ombros, do sutil ao mais frenético ritmo, e repentinamente CATAPLAFT!!!, eis diante dos meus olhos um imenso e dourado par de asas aberto, movendo uma onda de ar por todo o consultório, com delicioso odor de... Anjo. Percebi que havia uma parte faltando na asa esquerda...

– O senhor reparou? Bem, estive em Boston, assistindo àquela corrida... Preferia, se o senhor não se importar, pular essa parte e irmos direto ao assunto, poderia ser?
– Sim, sim, claro. É sua primeira consulta, não é? O senhor por favor me diga: em que posso ajudá-lo, senhor Anjo?
– Gab.
– Como? Ah, sim, sim... Bem, senhor Gab, eu...
– Somente Gab.
– Ok, Gab. Qual é o seu caso?

Subitamente o Anjo empertigou-se todo, deitado em meu divã. Olhou para todos os cantos da sala, como se buscasse ou procurasse algo... ou como se estivesse a me confidenciar algo muito secreto.

– Esse é que é o problema, doutor! Fui envolvido numa trama... e acabei saindo com fama duvidosa...
– Do que o senhor está falando, Gab?
– Você, por favor. Me trata só por você.
– Do que você está falando, Gab?
– Aquela história toda, o senhor sabe... O Chefe mandou eu trazer um recado, eu só fiz isso, obedeci uma ordem, tava no horário do meu expediente, é o meu trabalho. O senhor entende, não entende, doutor Delfino?
– Hum... – isso sempre funciona quando não sabemos o melhor rumo a ser dado à prosa.
– Tem culpa eu?! – gritou ele, mais por desabafo do que por fúria. – Tem, doutor
– Hum...
– Também acho que não, claro. Época antiga, não é como hoje, com email, telefonia, serviço de correios e médium treinado pra receber e retransmitir as ordens do Chefe! Os sonhos eram o único jeito, naqueles tempos! Aí é que tá o meu azar...
– Hum...

Já vi que era mais um típico caso de culpa recalcada. Toquei a sinetinha e não demorou nadica para dona Bherta (morta de curiosidade satisfeita) aparecer derretida em sorrisos, trazendo uma baixela de bolinhos de chuva com chá de cócegas fresquinho. Evidentemente, assim que serviu, ajoelhou-se diante do paciente e ficou a saudá-lo como fazem os islâmicos na hora de sua reza. Que vexame! Mas já faz tempo que descobri que o melhor a fazer numa ocasião assim é deixá-la ir até o fim, senão: é gafe puxando mais gafe...

– Prossiga, por favor. Qual é o seu caso, então, Gab?
– DOUTOR, POR FAVORRRR!!! Não houve caso algum, não está me escutando? Isso é tudo maledicência desse povo que adora uma boa fofoca milenar!
– Hum...
– O Boss me chamou na sala dele, com urgência. Lá vou eu! O senhor sabe como é que é: Anjo que é Anjo tem toda uma reputação a ser preservada. Então lá vou eu até o Gabinete da Chefia, haja asas pra suportar uma subida de mais de quinze mil nuvens e ainda ter que encarar uma cavalgada de muitos dias e meses no lombo de um Alazão de Fogo até chegar no gabinete e receber a ordem: “Avise aquela moça que já está na hora de ela gerar um Filho”!

A ficha caiu com o peso de um contêiner!

– O senhor... quer dizer, você... está se referindo ao...
– É, é! Aí a criatura sonha e, quando acorda, mistura tudo o que foi sonhado... Eu juro, doutor, que eu dei o recado. Mas sonho quase sempre vira telefone-sem-fio, né!
– Mas no fim tudo parece ter dado certo, não foi?
– Certo? Ah, sim!!! Muuuuuuuito certo!!!! – estava mais do que furioso: em estado pré histérico, o coitado. – Ninguém faz ideia do que passou aquele pobre Carpinteiro, esposo da moça...!!! É por isso que estou aqui, doutor...
– Para tentar trabalhar a culpa, o remorso...
– Nada disso! Vim marcar uma consulta pro marceneiro, doutor? Acho que domingo é um bom dia pra isso, porque o coitado trabalha até...

Nesse momento, um fuzuê absurdo na recepção do consultório interrompeu o fluxo da terapia em curso. O que é raro, porque esse prédio é tão velho e surrado que mal aparece na via pública. Dona Bherta estava alteradíssima, podia ouvir seus gemidos da minha sala:

– Os senhores tem hora marcada, tem? Pensam o que? Que aqui é a casa da sogra, é? Pois tirem seus cavalinhos, ou melhor, tirem seus sapatões da chuva porque eu acabei de encerrar o piso e... Esperem!!! O doutor está atendendo um Anjo lindo de morrer lá dentro, não pode ser interrompido!!!! Mas que absur...

Tarde demais, três homens encapuzados entraram no consultório, esfregando no meu belo narigão vermelho os seus distintivos de policiais. Um deles já se posicionou às minhas costas, com uma das mãos em meu ombro, deixando claro que levantar-me era algo fora de cogitação. O segundo, colocou-se diante de Gab, ao passo que o terceiro policial fez a abordagem direta.

– O senhor é Gabriel, o Anjo?
– Sim, desde milhões de anos. Mas já vou avisando: eu dei o recado corretamente. A moça é que distorceu na hora de interpretar o sonho e...
– Levante-se e coloque suas mãos nas costas.
– Esperem – intervim. – Ele é meu paciente, está sob custódia profissional. Sou pára-guru filosofático de Quinta Categoria...
– ... PhD em Charme, Beleza, Elegância e Gostura... – emendou aquele que estava às minhas costas.
– Propaganda enganosa! – sussurrou o segundo, que se mantinha estrategicamente atento aos movimentos do Anjo durante a abordagem do colega.
– Mas eu já disse que sou inocente. Não fiz nada. Foi obra do Divino!
– O senhor está sendo acusado da morte do grupo musical Mamonas Assassinas, senhor Anjo...
– Você. Pode me chamar de você. Tamojunto! E misturado! Mas que? O que significa essa acusação? Eu não sei quem ou o que é isso aí que o senhor falou...
– Um pastor evangélico afirma em vídeo disseminado na internet que foi o senhor, a mando de seu Chefe, que segurou o manche do avião desviando sua rota para uma colisão fatal com uma montanha.
– Mas eu sou inocente! Por que diabos... Ops!!! Perdão, Chefia! Por que diachos eu faria uma coisa dessa com alguém?
– O tal pregador alega que foi em nome de Deus, indignado com a irreverência das canções compostas pela banda musical que se tornou ídolo da criançada...
– Eu sou inocente!
– Sim. Claro. Todos são... O senhor tem o direito de permanecer calado, qualquer coisa que disser poderá ser utilizada contra sua defesa.

Ficamos em silêncio horas a fio, dona Bherta e eu, comendo bolinhos de chuva e tomando chá de cócegas... insosso.

* Palhaço Delfino é o alter-ego do escritor Carlos Biaggioli (biaggiolic@yahoo.com.br)

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